terça-feira, 23 de abril de 2013


Apago a luz. Deixo-me envolver pelo luar que me chega pelo vidro da janela. Fico sossegada, a ver pontos brilhantes no céu. Estrelas… tantas. Tão distantes e mesmo assim, parece que basta colocar-me nas pontas dos pés para roubar uma que dê brilho ao meu olhar.
Assim no escuro, só quero deixar de sentir. Adormecer como que embalada nas asas de anjo e ao acordar, que tudo fosse diferente. Conseguir perder-me em corpos estranhos nas noites perdidas que sucedem os dias, sem sentir depois, um travo amargo na boca, a errado. Abrir de vez as portas que mantenho entreabertas há tempo demais. Pelo medo de tentar e perder, pelo medo de arriscar, ao mesmo tempo que vem cá de dentro algo inexplicável que me diz para ir, para não ter medo de perder o pé, para saltar e deixar-me cair. Escancarar o peito e gritar o que sou. Sem pensar que fico exposta, delicada ou carente.
Esta noite não quero uma música que toca baixinho, que põe à prova os meus sentidos. Desligo o telefone porque não quero ouvir a voz dos outros. Não quero água quente em banhos demorados, nem luz de velas, nem desejos a povoarem-me os pensamentos. Não quero livros no regaço. Não quero nada mais além de mim, não quero outras histórias, outras vozes nem outras vidas. E deixo-me ficar assim, ouvindo de quando em vez os sons nocturnos. Quieta. Também eu animal da noite.
Quero silêncio. Para me ouvir. Para assimilar os dias intensos e perceber o que sinto. Para entender, ou simplesmente aceitar. Talvez, quem sabe assim, no silêncio, possa escutar o que o coração me grita desalmadamente, sem sossego…
Queria dizer talvez, que tenho a vida presa nas mãos vazias. Que amanhã não estarei aqui e tudo ficará num lugar escuro, como se nunca nada tivesse existido antes. Tudo o que sonhei, o que desejei e o que vivi. Resumido a nada.
E nesta vida à qual me agarro, há horas em que nada posso fazer. Como se nenhum gesto houvesse para mudar o rumo das coisas, percorrendo o mundo fingindo que navego. E de repente sou vagabunda, rainha num palácio de cristal. Uma vida tão cheia, sentindo-me eu tão cheia de nada. Aceitando quando os outros decidem essa vida por mim. Revoltar-me quando me dizem que o que tiver que ser, será. Como se existisse um destino cruel que me obrigasse, de um lugar que não alcanço, a viver em função da sua vontade. E cá dentro, não aceito. Não quero isso para mim. Eu posso escolher… mesmo que muitas vezes as minhas escolhas passem pelas escolhas dos outros. Falar de quando me sinto errada e perdedora, quando nada bate certo.
E as horas em que aceito a vida assim, conformada, quando só me apetece gritar-lhe, contrariar o mundo, revoltada, e dizer-lhe que não, que não é bem assim. Dizer-lhe que eu sou capaz, que a vontade faz metade do caminho, que é possível. Mas olho ao redor. E afinal, estou sozinha. Já nada fica tão simples …
Queria falar das horas em que amarro a vontade de chorar. Que sinto um nó na garganta, um aperto no estômago que sufoca, como uma angustia que mói devagar. Ou falar de quando me rendo às lágrimas, vencida. Dizer que muitas vezes choro por me sentir feliz e outras rio com uma vontade que me rebenta por dentro, de chorar.
Queria falar do que sou. Daquilo que vai alem do que os olhos do mundo conseguem alcançar. Que sou mar revolto em dias de tempestade, mar calmo que apazigua o peito, que sou palavras e imensidão. Que estou viva e envolvo as mãos na terra onde planto girassóis para depois pintar na janela o sorriso da alma.
Queria falar do amor que não dei, que não conheço, que não sei como é. Desse amor maior, que nada espera. Dizer que não construí um lar recheado de cumplicidade porque não me foi permitido. Que sou anjo ferido na asa, que não posso voar.
Queria falar da coragem que carrego algures e por vezes não sei onde está. Ou das horas de fraqueza, quando dou por mim a seguir caminhos por onde quero, mas não devo ir.
Queria falar das coisas grandes que trago em mim. Das boas e das outras… de tudo aquilo que por ser maior não se pode quantificar. As coisas que sinto, apenas porque sim. Sem motivo, sem razão.
Queria falar da religião que não tenho, ou da fé que não me abandona. Que sempre me faz acreditar na possibilidade do impossível. Que me faz lutar por causas perdidas apenas porque acredito, outras vezes desistir quando já não tenho força ou percebo que certas lutas, afinal, não valem a pena.
Queria falar da solidão que carrego, por sentir que me faz falta a outra metade de mim. Ou apenas dizer que há momentos em que o tempo me prova que não volta atrás e que eu já nem sequer quero seguir em frente. Porque me vejo em encruzilhadas sem saídas que não me deixam escolher. Das horas em que não é tanto assim, que não estou só, que se estou, me habituei. E deixo de pensar nisso.
Queria falar das oportunidades que me recusaram, que eu recusei, e das outras, que neguei. Falar dos momentos em que só desejo outra chance da vida para voltar atrás e quem sabe, fazer tudo outra vez. Re-fazer. Re-sentir. Re-viver. Mas na plenitude, no melhor daquilo que posso ser.
Queria falar de todos os amores que carrego no peito. Dos que senti sem viver, dos que podiam ter sido e não foram, das esperas onde me vi esquecida. Dos amores grandes e dos encantos. Dos arrebatadores que nos levam a alma e dos envoltos em algodão doce. Das saudades que sinto de todos os amores que ainda não vivi. Dos que não vivi porque não me permitiram, dos que desisti por me obrigarem a deixá-los partir. Dos amores que morreram à nascença, dos amores com um fim determinado, antes ainda de existirem. Dos que não se tentaram, dos que ficaram no escuro, que nunca viveram a luz, que ficaram nas sombras. E na memória. Dos homens que nunca consegui amar. Dos que amei e perdi. Dizer baixinho, no silêncio, que a linha que separa o querer bem do querer demais, é ténue.
Queria falar que sou pássaro que voa solto para lugar nenhum. Que o meu coração está triste e que o meu olhar te pertence. Da liberdade que sinto e não sei o que quer dizer, nem o que fazer com ela. Das horas que estendo as asas ao vento e plano lá no alto do mundo, misturada no azul altivo do céu, mergulhando no profundo azul do mar. E falar das outras horas em que sou apenas uma alga sozinha e esquecida, perdida na orla da praia depois que baixa a maré.
Queria falar da vontade de partir. De fugir. De continuar a ser nada em qualquer outro lugar. Ir embora sem olhar para trás. Desprender-me da vida como a conheço e deixar-me levar, para longe. Abandonar-me numa qualquer berma de estrada, esquecer-me e seguir sem nunca me arrepender. Sentir que não devia, mas fiz. E renascer, depois.
Queria falar de quando sou frágil, quando preciso do abraço apertado, quando sinto o desejo do amor. Da angustia que corrói o peito, devagar. Como se começasse a morrer muito antes da vida terminar.
Queria falar de quando sou jangada à deriva no alto mar, quando o céu é negro de nuvens carregadas. Quando as ondas me ameaçam derrubar e eu, sem bússola nem porto seguro, me deixo ir. Agarrando-me àquilo que sou, cá por dentro, acreditando que a vida não pode ser só isto. Que a tempestade, irá passar.
Queria falar dos muros que o medo constrói em torno de mim, das amarras indeléveis que me prendem. E das muralhas em torno dos outros, das quais me sinto refém, mesmo estando do lado livre da barreira intransponível. Falar dos nós e dos laços que nem sempre nos deixam voar, que vivemos entrelaçados como braços que nos agarram e não nos deixam soltar. Os nós do medo… que nos aprisionam e sem darmos conta, prendem os outros que já se sentem prontos a voar.
Queria falar das coisas grandes que não me cabem no peito. Falar que estou confusa e triste… que faço mantas de retalhos de memórias numa forma vã de não chorar. Queria falar de coisas que não se dizem, mesmo querendo. Do que é imenso e não existem as palavras certas para explicar. Porque as coisas grandes exigem palavras ainda maiores, e são pequenas, as que conheço.
Queria falar mas não o faço. Fico no silêncio a ouvir o que tenho a dizer, a escutar-me. A procurar-me. A tentar perceber onde me perdi.
Queria falar mas nada tenho a dizer. Não tenho voz nem vontade. Não encontro as palavras que perdi. E cansada, acabo por desistir.
Queria falar… de amor e de tudo que é sublime… mas não sou capaz.

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